Infertilidade e reprodução à luz da Bíblia
Ter um filho sempre foi um desejo legítimo da maioria
dos casais, ao longo da história da humanidade. A infertilidade era sempre uma
enorme frustração para o casal e motivo de humilhação e desprezo pela
sociedade, sobretudo para a mulher, porque se supunha ser ela a principal
responsável pela incapacidade de procriar.
No livro de Génesis, somos confrontados com este
problema na vida de Abraão e sua mulher Sara, e sabemos como Deus interveio miraculosamente,
permitindo o nascimento de Isaac na sua velhice. De acordo com o relato
bíblico, Sara terá sido a primeira mãe pós-menopáusica da história.
Encontramos muitos outros exemplos nas Escrituras em
que a maternidade e paternidade são considerados uma manifestação da benção de
Deus, por ex. no Salmo 127:3-5: “Os filhos são uma herança do Senhor, eles são
a sua recompensa. Os filhos nascidos na nossa juventude são como flechas nas
mãos dum guerreiro. Feliz o homem que tem muitas dessas flechas! Não será
envergonhado pelos seus inimigos, quando tiver de se defender diante dos juízes”.
A infertilidade pode ser o resultado do castigo de
Deus, como aconteceu com Mical, filha de Saul e esposa de David, conforme lemos
em 2 Samuel 6:20-23, mas nem sempre, como aconteceu com Zacarias e Isabel, que
viriam a ser os pais de João Baptista quando já tinham uma idade avançada (cf. Lucas
1:5-7).
Parece evidente, à luz das Escrituras, que a
infertilidade não fazia parte dos desígnios de Deus para o ser humano, mas foi
o resultado da desobediência de Adão e Eva no Jardim do Éden. Além disso, vemos
o amor e misericórdia de Deus ao permitir que Raquel, esposa de Jacó, e Ana,
esposa de Elcana, pais de Samuel, e muitos outros casais concebessem.
A infertilidade conjugal é definida pela Organização
Mundial de Saúde como uma doença do sistema reprodutivo, que se traduz na
incapacidade de um casal conceber ou levar a bom termo uma gravidez, depois de
pelo menos um ano de relações sexuais regulares sem qualquer proteção. Não é um
problema novo, mas tem vindo a aumentar nos últimos anos, para o que contribuem
diversos fatores dos quais destacaria a tendência dos casais optarem por ter
filhos cada vez mais tarde, pois há uma diminuição da capacidade reprodutiva da
mulher com a idade, sobretudo a partir dos 35 anos.
Atualmente, nos países desenvolvidos, a infertilidade
afeta cerca de 10-15% dos casais em idade reprodutiva. Em cerca de 30% dos
casos a causa da infertilidade é masculina, noutros 30% a causa é feminina,
noutros 30% é mista e nos restantes 10% é desconhecida, pois não se consegue
identificar o problema. Destacam-se, entre as causas mais comuns, problemas na
ovulação, doença das trompas uterinas ou do útero, endometriose e, nos homens,
anomalias na produção de espermatozoides.
O diagnóstico de infertilidade pode gerar sofrimento psicológico
em ambos os membros do casal, que se pode manifestar por baixa autoestima,
sentimentos de fracasso, ansiedade, depressão e isolamento, afetando as
relações sociais e o próprio rendimento no trabalho. Neste contexto, o
nascimento de Louise Brown, o primeiro bebé do mundo concebido artificialmente
em laboratório, em 1978 em Inglaterra, constituiu uma revolução que veio
alterar profundamente os conceitos da reprodução humana e conceder uma nova
esperança a muitos casais inférteis. A gestação desta criança decorreu de forma
normal no útero materno e somente a fecundação (união de um óvulo e de um
espermatozoide) decorreu em laboratório, chamada por isso fertilização in
vitro.
Estima-se que já tenham nascido mais de 8 milhões de
crianças em todo o mundo, com recurso à reprodução
medicamente assistida. Em Portugal, o primeiro bebé concebido através da
fertilização in vitro nasceu em 1986, no Hospital de Santa Maria, e
desde então muitos casais sem filhos têm conseguido alcançar deste modo a
maternidade e paternidade que tanto desejam. O número de crianças originadas em
tratamentos de reprodução medicamente assistida representa cerca de 3% do total
de crianças nascidas anualmente em Portugal.
As principais técnicas de reprodução medicamente
assistida são a inseminação artificial, a fertilização in vitro, a
microinjeção intracitoplasmática de espermatozoide e a transferência de
embriões criopreservados. Fala-se em embrião
desde a conceção até às 12 semanas de gravidez e em feto desde as 12 semanas
até ao nascimento.
A inseminação artificial consiste na introdução de
espermatozoides no aparelho reprodutor feminino, de modo a obter-se a
fertilização e posterior gravidez. Tem uma taxa de sucesso de cerca de 10% por
cada tentativa, embora seja necessário o uso prévio de fármacos, por via oral
ou injetável, para se promover a ocorrência da ovulação.
A fertilização in vitro requer a colheita de
ovócitos após estimulação dos ovários através de medicação hormonal injetável
durante cerca de 10 dias. O objetivo é colocarem-se em contacto num tubo de
ensaio as células sexuais, espermatozoides e ovócitos, previamente colhidos, para
que a sua união (fecundação) ocorra em laboratório. O ovo ou zigoto resultante
é incubado in vitro até que ocorra a divisão celular. Ao final de 3-5
dias um ou 2 embriões são então transferidos para o útero da mulher, para que a
gestação decorra como em condições normais. Tem uma taxa de sucesso de cerca de
25 a 30% por cada tentativa. O sucesso das técnicas de reprodução medicamente
assistida diminui com o aumento da idade da mulher.
O número de embriões produzidos e implantados é
reduzido de modo a evitar-se uma gravidez multigemelar, que está associada a
complicações como um maior risco de prematuridade dos bebés.
A microinjeção intracitoplasmática de espermatozoide
distingue-se da fertilização in vitro por ser selecionado um único
espermatozoide, em boas condições, para injeção direta no ovócito. É mais
utilizada nas situações de infertilidade masculina grave.
Na fertilização in vitro podem também ser
utilizados embriões criopreservados, ou seja, conservados pelo frio e que são
habitualmente embriões excedentários, resultantes das técnicas de fecundação em
laboratório, mas que acabaram por não ser implantados. As taxas de sucesso da reprodução
medicamente assistida em que se utilizam embriões que tinham sido criopreservados
durante meses ou anos, são sobreponíveis às da transferência de embriões, para
o útero da mulher, produzidos poucos dias antes.
As técnicas de reprodução assistida não estão isentas
de riscos. As mulheres grávidas têm maior risco de desenvolverem hipertensão
arterial, rotura prematura de membranas, diabetes gestacional e necessidade de
indução do parto. Os recém-nascidos têm maior risco de prematuridade, baixo
peso à nascença e anomalias congénitas.
Um dos principais problemas éticos e morais das
técnicas de reprodução assistida é a destruição de embriões humanos, que são
eliminados por não apresentarem as caraterísticas genéticas pretendidas ou
porque foram produzidos laboratorialmente e nunca chegaram a ser implantados,
sendo congelados sine die, ou ainda porque foram sujeitos a
experimentação científica.
A inseminação artificial com sémen do marido, nas
situações em que não é possível obter-se uma gravidez através de relações
sexuais, em nossa opinião não colide com nenhum princípio bíblico. A criança
concebida por este método irá nascer no seio de uma família unida
matrimonialmente. Também se nos afigura aceitável a fertilização in vitro,
nas mesmas circunstâncias, quando não é possível o recurso à inseminação
artificial ou quando ela foi ineficaz, mas desde que não haja destruição de
embriões, pois todo o embrião é um ser humano e tem direito a viver e nascer.
O rastreio das células sexuais (espermatozoides e
ovócitos) para prevenir doenças transmitidas geneticamente, antes da
fertilização, não suscita nenhum problema moral, o mesmo não acontecendo quando
esse rastreio se verifica em embriões humanos de modo a eliminar os portadores
de doenças ou anomalias genéticas. Também não consideramos aceitável
proceder-se à análise dos cromossomas com o objetivo de se escolher o sexo ou
outras caraterísticas morfológicas do bebé, nem tampouco a produção de embriões
para fins experimentais.
O recurso a bancos de esperma para inseminação
artificial ou fertilização in vitro, não só para ultrapassar problemas
de infertilidade masculina, numa espécie de infidelidade consentida, mas também
nos casos em que não existe infertilidade (pessoas sozinhas ou pares
homossexuais), representa uma instrumentalização inaceitável da vida humana, na
medida em que a criança resultante da gestação será privada desde o início de
ter relações filiais com o pai biológico.
Quando a mulher não pode (por ausência de útero,
p.ex.) ou não quer engravidar, existe a possibilidade de recorrer às chamadas
mães de substituição, as quais se comprometem a suportar a gravidez, mediante o
pagamento de determinada importância (geralmente avultada) e, após o parto,
entregar a criança ao casal, abdicando de quaisquer direitos sobre ela.
Na situação mais frequente, procede-se à transferência
para o aparelho reprodutor da potencial “mãe de substituição”, de um embrião
resultante da fertilização in vitro das células sexuais do casal. Outras
vezes, a “mãe de substituição” é inseminada artificialmente com espermatozoides
do elemento masculino do casal, geralmente por ausência ou patologia
irreversível do útero do elemento feminino do casal. Neste caso, esta “mãe de
aluguer” contribui não só com o seu útero mas também com o seu ovócito, com o
consentimento do casal.
O desejo de ter um filho, embora legítimo, não se
poderá sobrepor à necessidade de proteção dos mais fracos, vulneráveis e de
menores recursos económicos. A maternidade de substituição diminui o estatuto
de maternidade da mulher, reduzindo-a ao papel de “incubadora humana”, sendo o
benefício financeiro a principal motivação da mulher. Dificulta o vínculo entre
a futura “mãe” e o bebé, podendo desencadear perturbações psicológicas e
emocionais nas crianças nascidas nestas circunstâncias. Os casos envolvendo
remuneração configuram uma situação de injustiça social, na medida em que se verifica
com frequênciade a exploração de mulheres com poucos recursos financeiros por
parte de casais com nível económico elevado. Nas situações, embora raras, em
que se verifica uma anomalia congénita no recém-nascido ou no feto, poderá
dar-se a infeliz circunstância de nem a mãe hospedeira nem o casal progenitor
desejarem a criança. Outra situação, que já tem acontecido, é a mãe hospedeira,
após o nascimento, desejar ficar com a criança, o que suscita problemas legais
de difícil solução.
A reprodução medicamente assistida post-mortem
consiste na utilização de esperma do elemento masculino do casal, depois da sua
morte, esperma esse que tinha sido previamente colhido e congelado com o seu
consentimento. Embora seja uma prática permitida e realizada em alguns países,
a satisfação do desejo da mulher não pode sobrepor-se ao direito da criança não
ser órfã quando é concebida.
Em resumo, acompanhamos com satisfação o
desenvolvimento e aperfeiçoamento das técnicas da reprodução medicamente
assistida, reconhecendo que poderemos usar todos os recursos que a ciência nos
proporciona para o bem-estar e harmonia familiar, desde que não colidam com os
princípios claros da vontade de Deus, revelados na Sua Palavra. Nesse sentido,
aconselhamos apenas os tratamentos de infertilidade que respeitem a integridade
da família e o compromisso conjugal. Recordamos ainda que, no decurso dos
séculos, inúmeros casais têm recorrido à adoção como forma de ultrapassarem a
sua infertilidade, o que constitui uma alternativa perfeitamente legítima e
compassiva, com evidentes benefícios para a própria criança adotada.
Dr. Jorge Cruz