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Alterações climáticas: Uma perspetiva cristã

As alterações climáticas, devido ao aquecimento global, são um dos principais desafios do século XXI, a nível científico, tecnológico, político, económico, social e ético. Têm consequências adversas para a saúde humana, a ponto da prestigiada revista médica The Lancet considerar que as mudanças climáticas representam a maior ameaça à saúde pública, a nível global, no presente século.

Existem causas naturais que promovem o aquecimento global, como alterações na radiação solar, mas as principais são as que têm origem nas atividades humanas, denominadas antropogénicas, com destaque para o consumo de combustíveis fósseis, como o carvão mineral, derivados do petróleo e gás natural, que ocasionam a emissão de gases, sobretudo CO2, na atmosfera e contribuem para o chamado efeito de estufa. O efeito de estufa, em condições normais, é um mecanismo regulador benéfico da temperatura na superfície terrestre, sem o qual a temperatura média global seria de cerca de 15 ºC negativos em vez dos 15 ºC positivos da atualidade. Contudo, é exacerbado pela elevada concentração na atmosfera de CO2 e outros gases, como o metano e o óxido de azoto, resultantes da atividade humana, impedindo que o calor dos raios solares, refletidos pela Terra, se dilua no espaço, condicionando um aumento da temperatura terrestre. Outras causas antropogénicas importantes do aquecimento global são a desflorestação, uma vez que a vegetação desempenha um importante papel na absorção de CO2, e a atividade agropecuária, principalmente de gado bovino e ovino, pois a digestão dos alimentos ingeridos por estes ruminantes provoca a libertação de metano na atmosfera.

Em 1988, foi criado o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change ou IPCC) por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP) e da Organização Meteorológica Mundial (WMO). É constituído por cientistas de cerca de 200 países e representa a maior autoridade mundial sobre mudanças climáticas e aquecimento global. O relatório de 2021 do IPCC, elaborado por 234 cientistas de 66 países, com base em mais de 14000 estudos, concluiu que as atividades humanas são a principal causa das mudanças climáticas, tendo sido responsáveis pelo aumento de 1,1 graus Celsius da temperatura média terrestre em relação aos valores pré-industriais (1850-1900), estima-se que atinja 1,5 graus Celsius nos próximos 20 anos e que continue a aumentar, se não houver uma drástica redução da libertação de gases com efeito de estufa para a atmosfera.

Mesmo que se consiga reduzir significativamente a emissão de CO2 e outros gases, e o aumento da temperatura não ultrapasse os estimados 1,5 graus Celsius, o valor-limite que tinha sido estabelecido no Acordo climático de Paris, a instabilidade da camada de gelo marinho na Antártida e a perda irreversível da camada de gelo da Gronelândia, com o colapso dos glaciares, provocarão uma elevação de vários metros no nível médio das águas do mar, com a perda de recursos costeiros e redução da produtividade da pesca e da aquacultura. O degelo do Ártico é particularmente dramático, porque a perda das calotes polares irá libertar toneladas de metano retido no gelo, contribuindo assim para o agravamento do efeito de estufa. A biodiversidade biológica será também afetada, contribuindo para maior frequência de incêndios florestais, disseminação de espécies invasoras e surgimento de doenças tropicais fora das zonas endémicas.

A dependência dos combustíveis fósseis no setor energético, embora tenha proporcionado um enorme desenvolvimento económico e social dos países mais industrializados, tem efeitos adversos na saúde devido à poluição, sedentarismo e maus hábitos alimentares, que aumentam o risco de doenças cardiovasculares, oncológicas e respiratórias. As alterações climáticas terão um impacto nefasto cada vez maior na saúde, quer diretamente, devido aos efeitos nocivos dos extremos de temperatura, quer indiretamente, através do agravamento da poluição, aumento do nível dos oceanos, diminuição do acesso a água potável, redução da produção de alimentos, e aumento do número de desalojados devido às catástrofes naturais. Todos os países do mundo são afetados, embora o seu impacto seja maior nos países menos desenvolvidos, agravando a sua pobreza, nutrição, e acesso aos serviços de saúde, pondo em risco as conquistas obtidas nos últimos anos em termos de saúde pública, à escala global.

Uma perspetiva cristã

O relato bíblico apresenta a criação como algo “muito bom” aos olhos de Deus, que reflete a Sua glória e majestade. A autoridade que Deus concedeu ao homem e mulher sobre a criação quando lhes disse: "Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais" (Gn. 1:28) não era um mandato para a exploração abusiva dos seres vivos e recursos naturais. Revela o lugar especial que o ser humano ocupa no planeta terra, pois é o único ser vivo criado à imagem de Deus, dotado de razão e emoções, com capacidade de amar e de fazer escolhas morais, e com uma dimensão espiritual eterna.

O propósito de Deus quando atribuiu ao Homem o dever de cultivar e guardar o Jardim do Éden, onde o colocou, demonstra que devia ser administrador responsável da Terra, que em última análise pertence ao Senhor (Sl. 24:1). A acusação de que o mandato bíblico de dominação da criação, de Génesis 1:28, é a raiz dos problemas ambientais é infundada, até porque eles existem igualmente em sociedades e culturas que não foram influenciadas pela tradição judaico-cristã. Conforme salienta o teólogo John Stott, seria ridículo imaginar que Deus criou o mundo e o entregou ao Homem para este o destruir.

O pecado de Adão e Eva levou à sua expulsão do Paraíso e afetou também o mundo natural, em resultado do castigo de Deus, que disse ao homem: “…maldita é a terra por tua causa; com sofrimento comerás dela todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e ervas daninhas” (Gn. 3:17-19). Para o teólogo Wayne Grudem, a expressão “espinhos e ervas daninhas” é uma sinédoque, ou seja, uma figura de estilo que consiste em exprimir a parte pelo todo, e que neste contexto pode incluir “plantas venenosas, cobras e insetos venenosos, animais selvagens perigosos, furacões, inundações, secas, sismos (…) que trazem destruição, doença e até mesmo a morte”.

Na encíclica Laudato Si’, dedicada aos problemas ambientais, o Papa Francisco afirma claramente que a destruição da natureza e do ambiente é acima de tudo um problema moral, devido a um antropocentrismo individualista que provoca uma rutura na relação do ser humano com Deus, com os outros e com a Terra, que denomina de “nossa casa comum”.

Apesar dos efeitos nefastos da Queda sobre a criação, as Escrituras afirmam que o ser humano deve ser responsável na forma como lida com os outros seres vivos e com os recursos naturais de que dispõe (Lv. 19:23-25, Dt. 20:19-20). O quarto mandamento, em que Deus determina um dia de descanso em cada sete, era também para benefício dos animais (Ex.23:12). Além disso, no último ano de cada período de sete anos (Ano Sabático), a terra não deveria ser cultivada, só se colhendo o necessário para a sobrevivência, o que por um lado permitia a reposição de nutrientes do solo e uma maior produtividade nos anos de cultivo, e por outro lado punha à prova a confiança do povo de Israel na provisão de Deus. Havia ainda um período adicional de pousio no 50.º ano (Ano do Jubileu), no qual as propriedades eram devolvidas aos seus donos originais e os escravos eram libertos (Lv.25).

Cristo declarou que toda a Lei de Moisés e o ensino dos profetas se resume a dois mandamentos: amar a Deus e amar ao próximo (Mt. 22:37-40). Podemos, assim, considerar que o cuidado para com a natureza é uma demonstração do nosso amor para com Deus, que continua a agir ativamente no mundo e a sustentar a Sua criação, providenciando alimento e abrigo aos animais, como lemos por exemplo no Salmo 104, um hino de louvor ao Criador, da autoria do rei Davi. O cuidado para com a natureza e o ambiente revela também o nosso amor para com os outros, e em especial dos mais pobres e vulneráveis, mais afetados pelas alterações climáticas, de modo que somos chamados a um desenvolvimento sustentável e a um usufruto equilibrado dos recursos naturais.

No Evangelho de Mateus, quando Jesus declara aos Seus discípulos: “Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros; mas vosso Pai celestial as alimenta. Acaso não tendes muito mais valor do que elas?” (6:26), e “olhai como os lírios do campo crescem; eles não trabalham nem tecem; mas eu vos digo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles” (6:28,29), está a afirmar que os seres vivos e a natureza também têm valor intrínseco, independentemente de qualquer interesse utilitário para o ser humano. Essa mensagem é reforçada quando Cristo refere explicitamente: “Não se vendem cinco pássaros por duas moedas? No entanto, Deus não se esquece de nenhum deles” (Lc. 12:6).

Alguns cristãos defendem que a destruição progressiva do ambiente e da natureza é um sinal do final dos tempos, de modo que a sua preservação não é considerada uma prioridade, uma vez que acreditam que Deus irá destruir a terra tal como a conhecemos. Na verdade, no livro do Apocalipse (21:1), o apóstolo João relata a visão de um novo céu e uma nova terra, e o apóstolo Pedro alude igualmente a novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça (2 Pd. 3:13). No entanto, a palavra grega que utilizam para “novo” é kainós, que significa algo renovado, restaurado, de melhor qualidade, e não o vocábulo néos, utilizado para descrever algo recém-formado ou totalmente novo de raiz. Parece que a intenção dos autores ao usarem o termo kainós para a nova criação seria estabelecerem o contraste com o velho mundo corrompido pelo pecado e Satanás, e o novo mundo transformado por Deus. É o mesmo vocábulo que Paulo utiliza em 2.ª Coríntios 5:17 quando se refere ao novo homem ou mulher restaurados, após a conversão: “se alguém está em Cristo, é nova criação”. Deste modo, não podemos concluir que a restauração da criação de Deus torna desnecessário o empenho dos cristãos na sua preservação, do mesmo modo que seria absurdo assumir que a certeza da vida eterna no céu, com um novo corpo incorruptível, com caraterísticas semelhantes às do corpo ressuscitado de Cristo, iliba os cristãos da responsabilidade de cuidarem do seu corpo natural, que é frágil e mortal mas é também templo do Espírito Santo (1 Co. 6:19-20).

Na carta aos Colossenses, o apóstolo Paulo refere que a obra redentora de Cristo, que é perfeita e completa, inclui toda a criação, que tem sido afetada pelo pecado do Homem e ainda permanece num estado de escravidão. Cristo irá, por fim, reconciliar todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão no céu, e restaurá-las ao seu estado original imaculado como no Éden (Cl. 1:19-20). Por esse motivo, tal como os cristãos aguardam com esperança a transformação dos seus corpos, do mesmo modo a criação geme como que estando com dores de parto e aguarda a libertação plena quando Jesus voltar (Rm. 8:22-23).

A restauração de todas as coisas, após o retorno de Cristo, inclui a restauração da natureza e do meio ambiente, conforme foi anunciado pelos profetas. Haverá paz entre animais domésticos e selvagens, entre predadores e suas presas, e entre o ser humano e animais ferozes e venenosos, e até as águas do Mar Morto voltarão a ter vida (Is. 11:6-8, Ez. 47:8-12).

Podemos, assim, concluir que a preocupação ecológica dos cristãos está solidamente fundamentada nas Escrituras e está baseada na mensagem transformadora do Evangelho de Cristo, que deve afetar a maneira como vivemos e nos relacionamos com Deus, com os outros e com toda a criação.

Dr. Jorge Cruz